quarta-feira, 7 de abril de 2010

Entrevista: Bruno Lewicki

Esta é a primeira entrevista do Blog Cultura e Direito, e espero que a primeira de muitas. Fico extremamente orgulhosa de falar com um dos estudiosos mais respeitados do Direito Autoral no Brasil, refiro-me ao Professor Doutor do curso de pós-graduação lato sensu da UERJ e da PUC-Rio, Advogado, Vice-Presidente da Comissão de Direito Autoral da OAB/RJ, além de Coordenador Editorial da Revista Trimestral de Direito Civil, o Senhor Bruno Lewicki. O curriculo impressiona, mas as suas palavras também.

Falar em Direito Autoral é algo realmente complexo, podemos dizer que muitos interesses estão em jogo - os de artistas, escritores, músicos, cineastas, pesquisadores, entre outros, e do outro lado, os interesses das empresas, gravadoras, editoras, corporações e assim por diante. Ter uma posição segura sobre o assunto não é algo realmente fácil e nem acredito que isso deva ser importante, pois, estamos falando de uma das áreas do Direito que mais cresce, se transforma, e ainda por cima, é alvo de discussões diárias entre acadêmicos, artistas, a mídia de forma geral, empresários, enfim, todos. Como bem disse o Lewicki, o Direito Autoral é muitas vezes tratado (injustamente?) como "uma espécie de Geni da música do Chico".

E é óbvio que devido a interferência das novas tecnologias, como a Internet, e também dos mais recentes meios de comunicação, vide este blog, revoluções acontecem diariamente no bojo do Direito Autoral. Já é lugar comum dizer que todos podem ter acesso pela Internet gratuitamemte a músicas, filmes, livros, obras de todo o tipo, mas é isso que acontece e aí ficam os questionamentos... Como proteger essas obras? Como ficam financeiramente aqueles que as criam? Mas todos têm direito a informação, a cultura, certo? Respostas existem aos montes... Soluções? Algumas... Mas quem tem certeza de alguma coisa? Será que isso um dia vai ser pacificado? Quem sabe...

O Direito Autoral é direito sui generis, que carrega em seu bojo natureza moral e patrimonial. Ou seja, tanto tem a ver com o lado artístico, a inspiração quase divina, é "parir" uma obra como se filho realmente fosse, falando de concepção humana mesmo; como com a questão mais burocrática, de se ganhar dinheiro com aquilo produzido, de se viver do suor do seu próprio rosto. É e justamente por andar nessa linha tênue, ser filho de fogo e água, que o Direito Autoral é alvo de críticas e talvez nunca deixe de ser.

A primeira legislação autoral da qual se tem notícia no mundo foi o denominado "Estatuto da Rainha Ana", apresentado pela Câmera dos Comuns, em Londres, no século XVIII. O Copyright Act, como também foi conhecido, "estabelecia aos autores o direito exlusivo de imprimir e dispor das cópias de quaisquer livros" (Costa Netto, 2008). Nasce, portanto, o Copyright, e de lá pra cá é história, o monópólio é instaurado no mundo.

Mas, deixando de lado essa questão histórica, o objetivo aqui é simples e direto, sem querer causar muita polêmica. Trata-se de um bate-papo informal sobre o Direito Autoral. Um passo a passo para entendermos um pouco do que se trata, como funciona, e o porquê dessa celeuma toda em torno desse ramo do Direito Civil.

Sem mais, fiquem com a entrevista.

Lewicki, na abertura do Forum Nacional de Direito Autoral no Rio de Janeiro, dezembro de 2007.
(Crédito da foto: Jorge Clésio)

BLOG: Vamos começar do início, para esclarecermos aos leitores sobre o tema. Do que se trata o Direito Autoral?

Bruno Lewicki: Acho que tenho mais vocação para Chacrinha que para Descartes, então provavelmente eu vá confundir mais do que explicar. Bem, eu prefiro enxergar o direito autoral pelo seu lado objetivo, não apenas como direito subjetivo, ou seja: para mim, é um ramo do direito. Um ramo do direito que se ocupa das relações jurídicas surgidas a partir da criação, da circulação, do uso, da transformação de obras intelectuais: livros, filmes, canções, esculturas, pinturas, obras arquitetônicas, e por aí vai.

A lei brasileira tem uma peculiaridade: ela exemplifica aquilo que pode ser e aquilo que não são obras intelectuais. Eu acho interessante porque hoje o direito autoral se define muito também por aquilo que ele não é, pois quanto mais a lei expande a proteção, mais as pessoas compreensivelmente querem esticar a corda demais. E aí é um tal de querer proteger método de ioga, sobremesa de restaurante... Quando há coisas que podem ser resolvidas com o recurso à concorrência desleal, por exemplo. Havia algumas ações antigamente de plágio de projeto arquitetônico que hoje você vê a mesma pretensão deduzida com mais eficiência como trade dress, algo ligado à teoria da concorrência desleal. Também não gosto muito quando vejo o direito autoral como uma espécie de Geni da música do Chico, tomando pedrada a torto e a direito como se fosse o responsável por todos os problemas do mundo. Não é, não. Mas a nossa legislação está, sim, bastante atrasada...

BLOG: É notório, de fato, que existe um abismo muito grande entre a lei e a realidade, principalmente no caso da legislação autoral. A Lei 9.610/1998, Lei de Direito Autoral brasileira, é considerada para muitos uma boa legislação, isso procede? E o que falta para ela ser mais respeitada?

Bruno Lewicki: Um dos argumentos mais comuns para quem defende a desnecessidade de reformar a Lei de Direitos Autorais brasileira é que ela é relativamente nova. Eu, pessoalmente, acho esse argumento muito fraco. Uma lei pode ser nova e ter nascido velha. Isso acontece em alguns dispositivos da Lei nº 9.610, que é, em grande parte, praticamente um decalque da lei anterior, de 1973, que por seu turno já tinha certo caráter de consolidação do que se produziu após o Código de 1916. É claro que há coisas boas – o inciso VIII do art. 46, por exemplo, que trata da utilização de obras já existentes para a criação de obras novas, é muito moderno. Talvez por isso mesmo tenha sido pouco usado até hoje... Mas considero inegável que a lei vigente precise, sim, ser revista, e isso é convergente ao que acontece hoje em todo o mundo.

Cheguei a defender, no meu doutorado, que era melhor privilegiar uma releitura do que fazer uma reforma qualquer. Isso porque vivíamos em um cenário de projetos de lei fragmentados, desconexos, oriundos de grupos de interesse antagônicos. Entendo que aquilo que o Ministério da Cultura tem feito desde 2007 com o Fórum Nacional de Direito Autoral é algo louvável e completamente diferente, pela sua abrangência. E já se prometeu que haverá consulta pública sobre todos os aspectos desta reforma. Acho que esta é a hora de diminuir o descompasso que você menciona entre direito e realidade. É isso, no fundo, que faz com que uma lei seja respeitada, em grande parte: a sociedade precisa se reconhecer nela.

BLOG: Falando da Internet, o P2P pode ser considerado o grande marco para o desencadeamento de trocas de arquivos pela Internet?

Bruno Lewicki: Sem dúvida. Lembro do auge do “Verão do Napster”, há cerca de dez anos atrás, o Scott Rosenberg escrevendo na “Salon” uma comparação que depois se tornaria lugar comum: abriram a caixa de Pandora. As pessoas, dizia ele, vão se acostumar e nunca mais vão voltar a consumir música da mesma forma que consumiam antes. Ele estava certo. A indústria fonográfica pode ter ganhado algumas batalhas de lá para cá, como o próprio caso do Napster, mas a guerra é outra história. Com a difusão da banda larga, o cinema foi sendo atingido também, e o Kindle e o Ipad provavelmente farão o mesmo pelos livros. Ainda que eu ache que com o livro a coisa é mais complicada, que a substituição não é tão plena como no caso do MP3; mas isso talvez só demonstre que eu também sofro da mesma miopia que acometeu a indústria fonográfica há uma década.

BLOG: A pirataria já virou uma realidade, é impossível combatê-la?

Bruno Lewicki: Depende. Depende do que vamos chamar de pirataria, termo, por sinal, que eu não adoro – em grande parte por influência do José de Oliveira Ascensão, decano do autoralismo lusófono. Em algumas das palestras que o Ascensão tem dado no Brasil ele faz uma crítica que acho inspiradíssima: em resumo, e com um humor muito luso, ele diz que o Código Civil, por exemplo, não fala de “caloteiros”, mas sim do inadimplemento, e que é preciso ter apego aos termos corretos no direito civil. Se não há bucaneiros à vista, por que falar em piratas? O termo contrafação não basta? Enfim, voltando da digressão, há uma tendência em certos setores de igualar todas as infrações e supostas infrações ao direito autoral. Um bom exemplo são os processos milionários movidos contra usuários caseiros de P2P. Não é o caso de dizer se este sujeito está certo ou errado, mas botá-lo no mesmo pote – ou na mesma cela – do grande contrafator organizado é mais do que ingenuidade, é um tiro no pé em termos de relações públicas.

Acho que é possível combater a grande contrafação com inteligência, e também com educação. Mas não aquela educação de gastar milhões com campanhas para dizer que quem copia um livro ou compra um disco pirata é um criminoso malvado. Eu tenho um amigo que é Promotor no Rio de Janeiro, atuante na área criminal, doutorando em Direito Penal. Ele brinca comigo que não entende muito do assunto, mas que estranha esse tipo de campanha. Para ele, crime é aquilo que a sociedade desaprova em conjunto, e segundo ele só no direito autoral é preciso gastar tanto dinheiro para convencer as pessoas que aquilo que elas fazem sem culpa é um crime. Acho uma visão curiosa...

BLOG: O que você acha da volta do LP? É mais uma tentativa das gravadoras contra a Pirataria, não é?

Bruno Lewicki: Que seja! Eu adoro vinil. E não acho que seja uma coisa das gravadoras não, pelo contrário. Acho que foi um movimento espontâneo, e aí as gravadoras perceberam e estão voltando a lucrar com isso, o que não tem nada de condenável. Acho um pouco bobo – e muito maniqueísta – ficar pintando as gravadoras como uma espécie de partido nacional-socialista da indústria cultural, seres malvados que querem extorquir o público e espoliar os artistas. No máximo, alguns setores mais radicais podem se assemelhar mais aos monarquistas, querendo anacronicamente restaurar privilégios que não fazem sentido nos dias de hoje.

Para dizer a verdade, acho que a indústria fonográfica está é meio perdida, tentando encontrar o passo novamente. Se fosse uma luta de boxe, poderíamos dizer que está aberta a contagem. Mas não necessariamente significa que ela vá ser nocauteada – aliás, acho que não vai, pelo menos como um todo. Quem souber se reinventar fica, como, aliás, mostra a história do capitalismo. E discos de vinil têm tudo a ver com isso. É um pouco do que eu falava na pergunta anterior quando mencionei a necessidade de educação – educação cultural como um todo, na verdade. O sujeito que tem uma educação cultural desde cedo, contato com livros, discos, arte, este cara nunca vai deixar de consumir cultura, de um jeito ou de outro. Pode até baixar uma música rara ou copiar um livro esgotado, mas vai comprar bens culturais sempre que puder. Sempre foi assim, assim como sempre se criou independentemente de existirem “direitos autorais”, um conceito relativamente recente na história da humanidade. Quem gosta mesmo de cultura irremediavelmente vira um pouco fetichista, e vai consumir, em alguma medida, ainda que sejam discos de vinil – que, por sinal, são objetos lindos...

BLOG: Muitas gravadoras começaram a vender por preços irrisórios músicas em seus sites. Isso vem dando certo na prática?

Bruno Lewicki: Repetindo a resposta meio canalha que dei há pouco, depende. Mês passado mesmo saiu uma pesquisa mostrando que pela primeira vez, no Brasil, o lucro com música digital superou a venda de CDs. Então, olhando por aí, deu certo. Por outro lado, esta “ultrapassagem” seguramente só aconteceu porque as vendas de CD não param de despencar – então, por outro lado, não deu certo, no sentido de que não “salvou” a vida da indústria. Mas deu uma boa sobrevida, que talvez seja o tempo necessário para resistir à “contagem do nocaute” que citei. Agora, não sei se concordo com o adjetivo “irrisório”. Claro que para você comprar uma faixa é bastante barato, mas se você compra todas as faixas de um álbum acho que o preço não fica tão distante do disco em si, que é muito mais legal de ter – olha o “fetiche do objeto” aí de novo... Creio que é preciso explorar outros modelos, como a indústria já está começando a fazer. Quando eu era moleque, por exemplo, lembro que os videoclubes – pelo menos lá em Niterói – não cobravam o valor de uma locação, mas sim uma mensalidade, que dava direito a você retirar um filme por dia, se você quisesse. Pode ser por aí, pagar um valor fixo e ter direito a infinitos, ou a muitos downloads. Assim, se ganha na escala, não na miudeza.

BLOG: Qual a diferença entre o Copyright e o Creative Commons?

Bruno Lewicki: A mesma que há entre uma laranja e uma banana. Ou, sendo mais exato, entre uma laranja inteira e um gomo separado desta laranja. O Creative Commons não é uma ruptura com o sistema do direito autoral, é uma ideia muito engenhosa nascida dentro deste próprio sistema. Não é propriamente minha especialidade, mas vamos lá: o conceito básico de direitos autorais patrimoniais diz que todos os direitos são reservados ao autor – que, na prática, normalmente os cede para uma pessoa jurídica, mas isso já é outra história.

A verdade é que não necessariamente o mais interessante para o autor é efetivamente impedir que outros possam exercitar livremente alguns de seus direitos, como o de reproduzir a obra para fins não-comerciais, por exemplo. Afinal, para artistas iniciantes, muitas vezes, qualquer divulgação pode ser positiva. Ora, esse autor sempre podia abrir mão desses direitos, licenciando-os para terceiros, mas esta hipótese é muito pouco prática. A proposta do Creative Commons é fazer isso de uma forma maciça e difusa, usando códigos que sejam facilmente inteligíveis pelo público. Ou seja, no fundo é uma forma nova de fazer algo que sempre pode ser feito. Por isso digo que é engenhoso. E, claro, ninguém é bobo de negar que tem um poder simbólico incrível.

BLOG: Além do Creative Commons, há outro meio alternativo de licença de obras autorais que não conhecemos?

Bruno Lewicki: Há tantos quanto a mente humana possa imaginar. Eu adoro mencionar em minhas aulas o exemplo do Jonathan Lethem, um escritor norte-americano que acho incrível. O Lethem, há um tempo, disse que estava cansado de não conseguir ver seus livros virarem filmes – ele tem um estilo extremamente, por assim dizer, cinematográfico, no melhor sentido. Sempre que a coisa chegava perto de acontecer, uma das muitas engrenagens que existem no meio deste processo – agentes, leilões, opções – atravancava. Então ele lançou uma espécie de concurso no seu site pessoal, dizendo que em um dia determinado escolheria pessoalmente a proposta que ele mais gostasse e cederia ao diretor que a houvesse enviado uma opção para filmar seu último livro de então, You Don’t Love Me Yet. A opção seria gratuita até que a produção, já finalizada, conseguisse um acordo de distribuição, quando então lhe seria devido um percentual – Lethem não queria que o filme emperrasse por falta de dinheiro – e o diretor teria que concordar em abrir mão, após um prazo, da possibilidade de impedir, por exemplo, que outros diretores filmassem a sua versão do livro, ou mesmo que fossem produzidas outras obras derivadas utilizando personagens ou situações daquela obra. É óbvio que o exemplo não é para ser aplicado universalmente – aliás, nem sei se o diretor escolhido por Lethem já concluiu o filme – mas o instigante aí é como o autor, em vez de ficar acorrentado a uma prescrição legal que não o servia, optou, ou melhor, desenhou um modelo à sua feição. Guardadas as proporções, acho que é por aí.

Agora, falando de algo mais organizado, há quem esteja tentando desbravar outros modelos, como as licenças Noank, inspirados no modelo proposto por William Fisher III no seu bom livro Promises to Keep. A ideia aí é que o artista possa permitir, por exemplo, o acesso digital à sua obra, sendo remunerado por isso a cada acesso, mas não diretamente pelo consumidor, e sim pelos provedores de internet que funcionam como intermediários. É uma ideia mais complexa, e a conversa vai longe. O modelo é promissor, mas inspira algumas preocupações com a privacidade – crítica que, de resto, já era feita quando Paul Goldstein, no fim da década de 90, falava que o futuro pertenceria à “jukebox celestial”.

BLOG: O que seria o Domínio Público? O que você acha disso?

Bruno Lewicki: O domínio público é o repositório de obras que podem ser livremente utilizadas pela sociedade pelo simples decurso de um prazo predeterminado pela lei, ou ainda em outras situações que a lei especifica, tais como as obras de autores desconhecidos ou de autores que faleceram sem deixar sucessores. O prazo geral, no Brasil, é de 70 anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao da morte do autor, mas há prazos específicos para algumas situações. É um prazo muito longo. Basta prestar atenção, por exemplo, quando for a um museu, naquelas placas que ficam na parede, ao lado dos quadros – e que normalmente indicam a data de morte dos autores. Há pintores que associamos a tempos mais do que idos, mas a obra deles ainda está longe de ingressar no domínio público. No caso de obras em co-autoria é ainda mais complicado, principalmente quando há uma diferença grande de idade entre os parceiros, pois a lei prescreve que a contagem do prazo só se inicia com a morte do último. Mas, enfim, sempre é importante lembrar que o domínio público não é a única hipótese que permite a utilização de obras sem necessidade de autorização ou de remuneração. Há também as limitações, que incidem durante o prazo de proteção e permitem tal uso em algumas circunstâncias. Este é, para mim – e já há muito tempo – o instituto mais interessante.

BLOG: O prazo direito autoral no Brasil é de 70 anos, você acredita que existe ainda um grande paternalismo nessa questão?

Bruno Lewicki: Não sei se a palavra correta é paternalismo, mas hoje há quase um consenso, ao menos entre os estudiosos, de que se estendeu demais o prazo de proteção – principalmente quando se leva em conta também o aumento na expectativa de vida. Imaginemos um livro publicado por alguém aos 30 anos de idade, por exemplo, e que venha a morrer com 80 anos – ambas as coisas bastante factíveis. Esta obra só vai ingressar no domínio público 120 anos após a sua publicação! E isso, claro, se não houver uma nova extensão legal do prazo no meio do caminho. É muito, sem nenhuma dúvida. E isso é ainda mais sentido em um mundo crescentemente autorreferencial. Por outro lado, não sou grande entusiasta de se comprar uma briga imensa para que a lei brasileira volte a estipular o prazo de 50 anos, mínimo permitido na Convenção de Berna. Pode gerar um sem-fim de discussões, de direito intertemporal inclusive, o que sempre é complicado...

E, voltando àquele exemplo que dei anteriormente, em vez de 120 anos teríamos um prazo de 100 anos, que continua amplo demais. Claro que acho 50 anos mais simpático que 70, há também um efeito simbólico aí, mas creio que o importante mesmo é desenvolvermos outros instrumentos, sobretudo as limitações, quem sabe licenças não-voluntárias, estabelecer um regime para as obras órfãs, talvez trabalhar melhor a teoria do abuso do direito aplicado ao campo autoral. Essas medidas já melhorariam, e muito, a situação.

BLOG: O caso Disney é muito famoso no mundo todo. Para quem não sabe, as legislações autorais naquele país foram modificadas várias vezes para que os personagens da Disney não caíssem em Domínio Público a despeito de a Disney basear os seus personagens em outros personagens de escritores cujas obras caíram em Domínio Público. O que você pensa disso?

Bruno Lewicki: O caso a que você se refere, que ficou muito conhecido, é o do “Sonny Bonno Act”, última grande extensão do prazo de proteção dos direitos autorais nos Estados Unidos – e que muitos, à boca pequena, chamam de “Mickey Mouse Act”, justamente porque teria entrado em vigor em um momento conveniente para o camundongo. Há vários aspectos a se considerar aí. Por um lado, não deixa de ser coerente que obras que tenham um impacto muito grande careçam de proteção – afinal, são árvores que ainda dão frutos.

Por outro lado, é evidente que essas obras, justamente pelo modo como se infiltram no imaginário da sociedade, sejam mais acessadas, utilizadas, citadas, parodiadas. Não podem ficar numa redoma. De novo, acho que o caminho do equilíbrio é estimular a criação de mecanismos que possibilitem a oxigenação dessas obras, facilitem o acesso da sociedade a elas, e não necessariamente diminuir o prazo de proteção. Claro que o domínio público é importante, mas de nada adianta, por exemplo, uma obra estar em domínio público se o seu único exemplar é propriedade privada e o direito não disponibiliza instrumentos para que a sociedade tenha acesso àquele bem.

BLOG: Não estaria na hora de artistas e escritores pararem de lutar contra a pirataria e a troca de arquivos pela internet, e aproveitar esses novos meios de comunicação para divulgar suas obras sem medo? Qual o passo que você indicaria para alguém que quer divulgar, mas não quer perder todos os seus direitos?

Bruno Lewicki: Bem, cada um sabe onde o seu calo aperta, não é? Então acho meio simplista dizer, singelamente, que está na hora de os autores pararem de lutar contra a pirataria e abraçarem os novos meios de divulgação. Mas é indiscutível que cada vez mais artistas têm vindo a público para mostrar certo inconformismo com a posição mais tradicional. E isso não ocorre apenas entre autores desconhecidos ou alternativos, como acusam alguns. Esta semana mesmo o jornal O Globo publicou uma matéria sobre o sucesso do estilo que se convencionou chamar de “sertanejo universitário”, e algumas das duplas – grandes arrecadadores de direitos e vendedores de discos – explicavam, até meio sem graça, que o sucesso deles deveu-se não a um grande esquema de divulgação das gravadoras, mas sim ao boca-a-boca fomentado pela venda de discos “piratas” e pela internet, o que levou a shows cada vez mais cheios, até que as gravadoras viram e foram atrás deles. É uma dinâmica meio parecida com aquela que o Ronaldo Lemos e a Oona Castro retrataram no livro Tecnobrega, sobre a cena paraense. Daí a dizer que esta tem que ser a nova regra vai uma distância, mas essa percepção tem mudado rapidamente. E, bem, os mais espertos têm percebido que é preciso aproveitar tudo isto, sim.

O conselho que eu posso dar para alguém que não quer perder todos os seus direitos é o mais simples do mundo: não os ceda. Você só irá perdê-los por um ato de vontade seu, então consulte um advogado de confiança e veja se há, por exemplo, uma cláusula de cessão definitiva de direitos autorais no contrato que lhe ofereceram. Para quem ainda não está nesse estágio, licenças Creative Commons podem ser uma boa saída para abrir mão de alguns direitos sem perdê-los de todo. Mas você mesmo pode estipular suas próprias regras, como no exemplo do Jonathan Lethem que eu mencionei. Os autores não precisam ficar se vitimizando: informem-se, saibam quais são os seus direitos e optem por aquilo que mais se adapta às suas aspirações, ao seu momento, ao seu público.

BLOG: Qual seria a maior dificuldade para artistas, escritores, ou seja, pessoas que vivem de suas obras, na hora de defender os seus direitos?

Bruno Lewicki: Há vários aspectos a se encarar aí. Temos dificuldades que são clássicas: no caso da música, veja-se a questão da gestão coletiva de direitos. É muito comum a queixa de músicos quanto ao sistema de distribuição do ECAD, assim como na sociedade há quem se queixe dos métodos de arrecadação do mesmo ECAD. Creio que quanto maior for a transparência do ECAD, mais fáceis as coisas se tornarão para todos. É uma instituição que tem investido muito, em tecnologia inclusive, e imagino que esse caminho da transparência é o futuro. Há uma grande dificuldade que atinge muitos autores, e diz respeito à eventual impossibilidade de arcar com honorários de advogado mais elevados em uma fase inicial de projetos culturais, justamente quando o cinto está apertado. Eu acho que uma união da OAB com as universidades e outras instituições públicas deveria fornecer alguma espécie de assistência judiciária especializada neste ramo. Claro que, aí, o padrão de hipossuficiência não pode ser o mesmo que a Defensoria Pública emprega no seu dia-a-dia.

Mas acho que, para algumas atividades, esse tipo de iniciativa poderia ser muito importante, sem necessariamente causar prejuízo ao mercado de advocacia. No caso do clearance de direitos, ou seja, obtenção de licenças e autorizações necessárias para realização de um projeto – um filme, por exemplo – temos um trabalho altamente “comodificado”, para usar um jargão dos escritórios de advocacia, que pode em grande parte ser desempenhado por estagiários ou advogados jovens, evidentemente supervisionados por profissionais experientes.

Além disso, acho inevitável que, no futuro, haja varas, câmaras e turmas especializadas, pelo menos nos grandes centros. As decisões judiciais sobre direito autoral, hoje, realmente não costumam primar sempre pela melhor técnica. Mas, de quem é a culpa? Dos julgadores que têm pilhas de processos para julgar, geralmente sobre outros temas bem mais conhecidos deles, ou de nós, “especialistas”, que não produzimos uma doutrina ao mesmo tempo clara e profunda para socorrer os julgadores? Também aposto minhas fichas, nesta linha, na autorregulação. Há exemplos nos Estados Unidos, por exemplo, de códigos setoriais que foram redigidos para os documentaristas, dizendo o que eles podem ou não fazer, quando é preciso pedir autorização e quando é desnecessário...

É evidente que este documento não tem força de lei, mas serve como um poderoso guia no dia-a-dia, já tendo, inclusive, sido utilizado, por exemplo, por companhias de seguro, que concedem proteção contra ações de responsabilidade civil às produções que seguiram os trâmites ali previstos. Ou seja, seu efeito prático é valiosíssimo. Eu brinco dizendo que estes códigos de autorregulação podem acabar servindo como aquela tal pasta de dentes que chega onde a “escova” – a lei – não alcança. É outra linguagem, desce a minúcias que a lei não consegue, nem é o seu papel. Mas sempre haverá a lei.

BLOG: Dentro da academia, quais as novidades que podemos encontrar dentro do estudo do Direito Autoral?

Bruno Lewicki: Falando do meu “quintal”, que é a Faculdade de Direito da UERJ, há um crescente interesse pelo direito autoral. Só no doutorado em direito civil, contando com a minha, são quatro teses de doutorado em anos quase consecutivos. Eu escrevi sobre as limitações ao direito autoral, o Carlos Affonso de Souza Pereira sobre abuso de direito autoral, o Allan Rocha está para defender uma tese sobre o audiovisual e o direito à cultura, e o Sergio Branco Vieira Junior está escrevendo sobre domínio público. Também houve uma tese no direito internacional, bem como algumas dissertações. E isso só na UERJ! É um quadro muito diferente daquele que foi retratado em uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura ao Instituto Pensarte, que está no ar no site do MinC.

A pesquisa, salvo engano, só focou até 2007, e de lá para cá tem sido escritas diversas teses, como os estudos do Gonzaga Adolfo, do Guilherme Carboni, entre vários outros. A Silmara Chinelato tornou-se titular da USP com uma tese sobre direitos autorais. Enfim, é um quadro animador, mas que não se traduz ainda, ao menos com a mesma eloqüência, em termos de publicações. Há muitos manuais superficiais.

BLOG: Recomende algum site, livro, artigo para os nossos leitores...

Bruno Lewicki: Pois é, eu falava justamente que ainda temos muito para melhorar no campo editorial. O fim da efêmera vida da Revista de Direito Autoral, que era coordenada pelo Manoel Joaquim Pereira dos Santos, é um desalento. Foram apenas quatro números, mas de uma revista exclusivamente dedicada ao assunto! A genial Karin Grau-Kuntz está coordenando a Revista Eletrônica do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, que já tinha a revista Criação – são duas iniciativas muito bem-feitas, mas nelas o direito autoral não é, digamos assim, “o” protagonista, e eu acho que há espaço para uma publicação só dele. Afinal, a nossa produção de artigos já é boa; não por acaso, há obras coletivas recentes que são muito interessantes, como os livros que homenagearam os saudosos Otávio Afonso e Bruno Jorge Hammes. Tudo isso é leitura obrigatória para quem quiser se interessar mais pelo direito autoral. Além disso, claro, leiam Ascensão – não só o famoso “livro amarelo”, mas seus artigos espalhados em periódicos.

A turma do CT&S da FGV-Rio – Ronaldo Lemos, Sérgio Branco, Pedro Paranaguá – também têm publicado livros muito bons. O Rodrigo Morais, da Bahia, publicou um livro sobre direitos morais que eu acho uma joia – brinco com ele que não concordo muito com algumas de suas conclusões, mas ele fez o tipo de livro que eu acho que precisamos: virou um tema de cabeça para baixo, com toda a honestidade intelectual, e ilustrou com casos e mais casos. E há coisas um pouco mais antigas que eu acho primorosas e que estão fora de catálogo, como os livros do Eduardo Vieira Manso. Quanto a sites, o Social Science Research Network é um repositório quase inesgotável de artigos acadêmicos, quase todos disponíveis para download. No Brasil, o site da Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC traz transcrições e vídeos das etapas do Fórum Nacional de Direito Autoral. E há blogs e mais blogs hoje em dia, mas para ficar só com um, sempre gostei do estilo de texto do William Patry. Tentei fazer algo parecido por um tempo no meu sobreautoral, mas não segurei o rojão. Talvez daqui a pouco ele volte...

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